Na modernidade, há a primazia do “eu”, do “sujeito”, a partir do “eu penso” cartesiano e com isso o modo de encarar a arte também mudou. Agora não mais o foco é no objeto, que características o objeto precisa ter para ser considerado uma obra de arte, ou, ainda, para ser considerado belo. Agora a primazia é do sujeito, o que o sujeito sente diante da obra de arte, o que o sujeito sente diante de algo belo.
Nesse sentido, nasce a estética como uma disciplina autônoma. A "estética", do grego "aisthēsis", significa justamente sentir, o foco é o que o sujeito sente. O oposto direto de estética é a anestesia, que também vem de "aisthēsis", mas com o prefixo "an-" como negação do sentir. A questão é, diante do que a gente consome cotidianamente, no rádio, na tv, nas plataformas de streaming, será que estamos falando de estética, da primazia do sentir, ou será que estamos falando de anestesia?
Essas são algumas perguntas que ecoam quando falamos sobre a indústria cultural, um sistema aparentemente inofensivo que, segundo Horkheimer e Adorno, desempenha um papel crucial na manutenção do status quo social. Mas como essa dinâmica funciona? Como nos afeta? Como a indústria cultural consegue nos cativar, moldar e até mesmo dominar nossos pensamentos e comportamentos? Na sequência, serão esclarecidas algumas engrenagens dessa indústria: a manipulação retroativa, a usurpação do esquematismo, a domesticação do estilo, a despotencialização do trágico e o fetichismo das mercadorias culturais.
A manipulação retroativa
Comecemos pelo conceito de manipulação retroativa, ou seja, a manipulação é feita não somente pela obra, mas, antes mesmo de a obra ser apresentada. Você já teve a sensação de que o filme ou a música que você consome são exatamente o que você queria? Parece que eles sabem o que você vai gostar antes mesmo de você perceber. E não é apenas o algoritmo trabalhando. Aparentemente, a indústria cultural ajusta sua oferta com base na demanda do público, mas, segundo essa tese de Horkheimer e Adorno, na verdade, ela antecipa e molda essa demanda.
Não se trata de fornecer o que o público deseja, mas de condicioná-lo a aceitar o que é ofertado, criando um ciclo vicioso de consumo e conformidade. Nesse jogo, o que poderia ser uma simples escolha de entretenimento transforma-se em um mecanismo sutil de controle. Esse ciclo de manipulação começa quando os produtores observam, ajustam e padronizam a oferta de produtos culturais com base nas reações do público. Ao invés de fornecer o que realmente se deseja, a indústria ensina o público a desejar o que é oferecido. Assim, há uma dança entre oferta e demanda.
Usurpação do esquematismo
Outro aspecto intrigante é a usurpação do esquematismo, ou, ainda, a usurpação da reflexividade. Quantas vezes você já percebeu o final de um filme desde os primeiros minutos? Ou conseguiu prever os próximos passos de uma trama musical? Isso acontece porque a indústria cultural tira de você a capacidade de formular julgamentos críticos. A indústria cultural se apropria da capacidade do sujeito de interpretar o mundo, oferecendo produtos já padronizados que não exigem esforço crítico. O consumidor não precisa mais pensar ou questionar; o produto já vem pronto, embalado em uma previsibilidade confortável. Aqui, o pensamento independente é substituído por uma assimilação automática, algo que, no passado, era função da própria consciência do sujeito.
Domesticação do estilo
Além disso, há a domesticação do estilo. A palavra "estilo" vem do latim "stilus", um estilete usado para escrever em tábuas de cera. Com o tempo, passou a significar a maneira particular de escrever, uma forma única de expressão. Hoje, estilo é padrão, perdendo sua individualidade. Diferentemente da arte autônoma, onde o estilo surgia da tensão criativa, a indústria cultural padroniza esse elemento. O detalhe, antes livre para se rebelar e inovar, é agora apenas mais um componente da totalidade funcional do produto. Os detalhes não mais carregam a força criativa, mas são reduzidos a peças que se encaixam em um modelo pré-estabelecido. O que era singularidade virou padronização.
O estilo não é mais uma expressão artística; tornou-se um artifício para garantir a aceitação e a lucratividade. Há uma domesticação do estilo. Pense nas músicas pop ou nas sertanejas: todas seguem uma fórmula de sucesso, não é? Ligamos o rádio e não diferenciamos uma dupla de outra nem pelo timbre da voz, nem pelo tema das letras e nem pelo ritmo. Existe um estilo padronizado, sem espaço para uma verdadeira inovação. E quando o novo acontece, a indústria cultural faz dele um novo padrão a ser seguido, o domestica, o exporta, o vende. Como isso afeta a forma como enxergamos a arte? Será que ainda podemos falar de arte no sentido pleno?
Despotencialização do trágico
Agora, vamos à questão do trágico. O que acontece com as histórias de sofrimento e superação? Na tragédia grega, o trágico era uma experiência profunda, capaz de transformar quem assistia, a partir do que o levava a sentir diante da obra. Eram as lutas dos deuses com a humanidade. A tragédia, que outrora provocava uma profunda reflexão sobre o destino e a condição humana, é reduzida a um mero espetáculo banal. O sofrimento é banalizado, e o que antes causava catarse agora serve apenas para entreter superficialmente. A profundidade do trágico se esvazia, deixando espaço apenas para uma caricatura emocional que não desafia, mas reafirma o status quo. Um filme todo sobre uma situação corriqueira. Ao invés de provocar reflexões profundas, o sofrimento é apresentado como mais uma forma de distração. Será que isso nos faz pensar ou apenas nos mantém ocupados? E, se estamos apenas ocupados, o que estamos deixando de enxergar?
Fetichismo das mercadorias culturais
Por fim, chegamos ao fetichismo das mercadorias culturais. Você já parou para pensar por que se sente mais valorizado por estar por dentro das últimas novidades da plataforma de streaming ou por ter assistido aquele filme premiado no Oscar? O que se busca não é mais a experiência estética, mas o prestígio social que o consumo desses produtos proporciona. O prazer de apreciá-lo, a experiência estética, foram substituídos pela necessidade de "estar atualizado". A arte, desprovida de sua função crítica, é transformada em mercadoria, e o consumo se torna o fim em si mesmo.
Enquanto uma obra de arte é para ser sentida, uma mercadoria cultural é para nos causar anestesia. Ao chegar cansado de um dia exaustivo, o trabalhador, ao ligar um filme previsível, que segue a mesma receita pronta de tantos outros que ele já viu, que no dia seguinte não vai nem lembrar do nome dos personagens nem da história, tem nesse breve momento no qual a sua energia não está a serviço de seu empregador, uma oportunidade de distração, para esquecer o cansaço, esquecer os problemas, e ir dormir com a sensação de que está tudo bem, para no outro dia começar tudo mais uma vez. Mas é preciso imaginar Sísifo feliz, vai nos dizer Camus.
Assim, a indústria cultural opera de maneiras que, à primeira vista, parecem inofensivas, mas que, em última análise, moldam e condicionam nossa visão de mundo. Cada uma dessas engrenagens — manipulação retroativa, usurpação do esquematismo, domesticação do estilo, despotencialização do trágico e fetichismo das mercadorias culturais — trabalha para nos manter dentro de um sistema que nos oferece o que desejamos, mas que também decide o que devemos desejar.
A pergunta que fica é: até que ponto somos realmente livres para escolher o que vamos assistir, curtir, ouvir, consumir?
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