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Arte e sensação

Por que algumas obras de arte nos afetam de maneira tão visceral? Como explicar aquela sensação que nos atravessa diante de uma pintura de Francis Bacon ou ao ouvir uma composição de John Cage? Para Gilles Deleuze, a arte não é uma questão de representação ou significado, mas de sensação, um encontro direto com forças que escapam à nossa percepção cotidiana.

arte e sensação

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Deleuze desenvolve uma teoria da arte que sugere um rompimento com abordagens tradicionais. Ele está interessado particularmente na arte enquanto não se limitando a representar o mundo, comunicar mensagens ou expressar emoções pessoais. Em vez disso, o interesse de Deleuze é na a arte enquanto captura de forças, tornando visível o invisível e audível o inaudível.

A sensação, conceito central em sua estética, não deve ser confundida com sentimentos ou impressões subjetivas. Trata-se de algo mais primitivo e mais potente: um bloco de afetos e perceptos que existe por si mesmo, independente tanto do artista quanto do espectador. Quando Bacon pinta a expressão de um grito em suas obras, ele não representa alguém que grita, mas intensifica as forças invisíveis que produzem o grito.

“Study after Velázquez's Portrait of Pope Innocent X”, 1983, Francis Bacon

Essa compreensão da arte como captura de forças nos leva a outro conceito fundamental: o diagrama. Na pintura, o diagrama é o momento caótico em que o artista desfaz as formas estabelecidas, criando uma zona de indiscernibilidade da qual podem emergir novas sensações. Quando Bacon usa traços aparentemente aleatórios ou manchas que deformam a figura, ele não a destrói, mas faz surgir uma nova ordem de sensações.

"Study for a Portrait", 1962, Francis Bacon

Deleuze distingue três elementos na pintura: a estrutura material (a tela preparada), o diagrama (as marcas livres e traços asignificantes) e a Figura (não confundir com figuração). A Figura é aquilo que emerge do diagrama, uma forma sensível que age diretamente sobre o sistema nervoso. Quando vemos os corpos distorcidos nas pinturas de Bacon, não estamos diante de uma simples deformação representativa, mas de uma deformação que intensifica forças invisíveis agindo sobre a carne.

A arte, nessa perspectiva, é uma luta constante contra o clichê. O artista precisa primeiro destruir os clichês, as formas pré-estabelecidas de percepção e representação, para então criar algo novo. Não se trata de inventar formas arbitrárias, mas de capturar forças. Como diz Deleuze, o problema não é reproduzir o visível, mas fazer surgir forças que escapam à percepção habitual.

Essa concepção tem implicações importantes para diferentes formas de arte. Na música, por exemplo, não se trata apenas de organizar sons para expressar sentimentos, mas de tornar sonoras forças que não são sonoras. Quando Messiaen usa ritmos que soam idênticos independentemente da direção em que são tocados, ou quando Varèse compõe massas sonoras em movimento, eles estão dando forma a forças inaudíveis do tempo e do universo, tornando-as audíveis.

O conceito de ritornelo em Deleuze nos ajuda a entender como a arte cria ordem a partir do caos sem eliminá-lo. O ritornelo funciona como um ponto de referência que organiza um espaço sem fechá-lo completamente, ele sempre deixa uma abertura para o imprevisível. É como uma criança que canta no escuro para se sentir segura: ao mesmo tempo em que a canção oferece conforto, ela também ressoa no espaço ao redor, interagindo com o desconhecido. O som ecoa, mistura-se com outros ruídos e pode até atrair algo inesperado.

A arte moderna, segundo Deleuze, tem uma tarefa específica: capturar as forças do nosso tempo. Não para representá-las, mas para torná-las sensíveis. Quando Pollock desenvolve sua técnica de gotejamento e respingos de tinta sobre a tela, quando Cage introduz o silêncio como elemento musical, quando Artaud explora os limites da linguagem teatral, eles não estão apenas inovando esteticamente, mas criando novos blocos de sensação que nos permitem experimentar as forças do mundo contemporâneo.

Isso nos leva a outro aspecto crucial: a arte como criação de um povo por vir. Para Deleuze, a arte não se dirige a um público já existente, mas invoca um povo que ainda não existe. Ela cria novas possibilidades de vida, novos modos de sentir e perceber que podem dar origem a novas formas de comunidade.

Nesse sentido, a arte se projeta para além das categorias tradicionais de representação, expressão ou comunicação. Ela emerge como um campo de experimentação, onde novas sensações são criadas, onde forças invisíveis são captadas e onde novos modos de existência são inventados. Pensada por Deleuze, a arte não é um espelho do mundo nem uma expressão do eu, mas uma máquina de produzir sensações que nos abrem para novas dimensões da experiência.