O Bolero de Ravel é uma música que habita o universo de quase todos nós. Desde menino, essa obra me encantou, tornando-se emblemática a partir do momento em que assisti, na década de 1970, à companhia de Maurice Béjart dançando essa poderosa partitura. Lembro-me do bailarino solista dançando sobre uma mesa redonda vermelha, cercado por outros homens. Anos depois, essa mesma coreografia seria usada por Claude Lelouch no final de seu filme "Retratos da Vida" (Les uns et les autres), onde o bailarino argentino Jorge Donn, junto com a companhia de Béjart, faz uma performance memorável aos pés da Torre Eiffel.
O filme "Boléro"
Mas não é dessa coreografia que o filme "Boléro" trata. O filme, com o acento agudo característico do francês, nos leva a Paris no final da década de 1920, onde a dançarina russa Ida Rubinstein encomenda uma música a Ravel para um balé espanhol. Ravel, inicialmente sem inspiração, demora a compor o que viria a ser o primeiro "hit" global da música clássica.
A cineasta Anne Fontaine (conhecida por "Coco Antes de Chanel" e "Gemma Bovery") nos apresenta uma obra que explora não apenas a criação do Bolero, mas também o complexo mundo interior de Ravel, um homem misterioso e distante, descrito como um "vulcão de gelo". O filme se concentra nas origens dessa composição icônica, enquanto nos revela um Ravel insone e atormentado por dúvidas, embora consciente de seu enorme talento.
O processo criativo
Em 1927, Maurice Ravel (interpretado por Raphaël Personnaz) já era um compositor famoso e respeitado, mas sua obra era criticada por alguns por ser considerada fria e pouco emocional. O filme não ignora outros aspectos da vida do compositor, como sua relação edipiana com a mãe (interpretada por Anne Alvaro), seu desconforto com as mulheres que o amavam, como Misia Sert (vivida por Doria Tillier), e seu fim trágico. Ravel, que sofria de afasia, faleceu em 1937, após uma operação cerebral.
Um gênio em crise
Ravel enfrentava um bloqueio criativo quando Ida Rubinstein, estrela dos Ballets Russes, lhe propôs essa nova criação. Apoiado por Misia, por quem era perdidamente apaixonado, e por amigos como Marguerite (interpretada por Emmanuelle Devos) e Cipa (vivido por Vincent Perez), Ravel finalmente consegue criar o Bolero, uma peça assombrosa e hipnótica. O ritmo repetitivo e crescente da obra é como uma metáfora para a própria vida do compositor, que aos poucos se desintegra, assombrado por seu passado e suas incertezas.
O legado de "Bolero"
Apesar de sua genialidade, Ravel era extremamente crítico, tanto consigo mesmo quanto com os intérpretes de suas obras. Uma das cenas mais reveladoras do filme mostra o compositor reagindo mal ao ver, pela primeira vez, Ida Rubinstein ensaiando seu balé, numa sequência que mistura humor e desconforto.
Um dos detalhes mais interessantes do filme é que ele começa com diversas versões do Bolero tocadas ao redor do mundo, culminando numa performance energética do bailarino François Alu, ex-Étoile da Ópera de Paris. Ravel, com seu estilo rigoroso e calculado, faz emergir uma composição que mantém o espectador constantemente envolvido, sem nunca saber exatamente quando o clímax da música será alcançado.
Um retrato de um gênio
Sob a direção musical de Alexandre Tharaud, o filme nos leva para dentro da mente de um gênio. Ravel é um homem consciente de seu talento, mas assombrado por dúvidas e medos. O caminho para o sucesso, como o filme mostra, é repleto de armadilhas e fracassos. A cineasta Anne Fontaine consegue pintar um retrato cativante de um homem que rejeita a felicidade e antecipa o desastre, criando uma obra-prima a partir de suas próprias turbulências internas.
Um clássico imortal
Boléro é mais do que uma composição musical. É uma experiência sensorial que, quase um século após sua criação, continua a tocar em algum lugar do mundo a cada 15 minutos. O filme de Fontaine é uma homenagem sensível e profunda ao homem por trás dessa obra-prima, revelando um gênio incompreendido, mas eternamente imortalizado por sua música.
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