Quando estamos habituados a beber o café vendido nos supermercado, tendemos a enxergar a bebida como relativamente bem definida, com poucas variações de sabor. Mas ao adentrar no mundo do café especial, instantaneamente nos vemos diante de um leque vastíssimo de sabores, notas gustativas, aromas, nuances, diferentes tipos de acidez entre outros pontos que nos fascinam e fazem com que aprofundemos cada vez mais no tema.
Mas há um importante ponto na capacidade de degustar e distinguir gostos que raramente é levantado. Ao educarmos nosso paladar, e elevarmos a qualidade do que consumimos, invariavelmente, com o tempo passamos a achar as coisas que outrora nos agradavam, menos saborosas e interessantes, e por vezes, até desagradáveis. Isso ocorre não só com qualquer tipo de alimento, mas também com outros aspectos sensoriais de nossa vida. Quem não vê hoje uma tela de TV de tubo, ou mesmo HD, e pensa como conseguíamos achar a imagem tão boa nelas, ou usou antigos fones de ouvido, e se encucou como as músicas que pareciam soar tão fiéis nele antes, hoje parecem chiadas e distorcidas.
Todos já ouvimos que é muito fácil subir de nível em qualquer aspecto da vida, mas muito difícil retornar. Mas o que pouco se fala, é que o mero fato de se atingir níveis mais elevados, faz com que, na média, as demais coisas pareçam piores, e por vezes, simplesmente não podemos evitá-las, como hoje fazemos por exemplo com as TVs de tubo.
Sobre esse tema, há uma incrível lição dada em um vídeo de James Hoffmann, barista vencedor do Campeonato Mundial de Baristas em 2007, e que hoje possui o maior canal de YouTube sobre o mundo do café, cuja o link, transcrição e tradução deixo abaixo:
- Aprender a distinguir gostos, assim como desenvolver essa habilidade, é muito importante e animador, porque você pode descobrir, descrever e de certa forma comunicar aos outros o que você sente. Além disso você não apenas é capaz de saber que algo é saboroso, mas também de explicar o porquê. E assim você começa a aproveitar mais o processo. Mas por causa disso, o sarrafo crítico começa a subir. Você desfrutará mais de certos alimentos e bebidas, mais do que habitualmente gostava, e provavelmente mais que aqueles a sua volta.
- Mas aqui está o que geralmente não se fala: quando o topo fica mais alto, em média, o que você come e bebe parecerá pior. E é assim porque você começará a notar todas os defeitos, deficiências e mediocridade que não notava antes.
- Assim, rapidamente você se encontrará em uma situação em que tudo que deseja é somente ter boas experiências gustativas. Você começará a buscar por toda parte, e até em outras cidades, o melhor café que tiver disponível, e mesmo assim, frequentemente ainda ficará decepcionado. E tão logo os topos ficam mais altos, você perceberá que obter tais ganhos ficará cada vez mais difícil. Logo você começa a gastar mais tempo e dinheiro tentando satisfazer essa necessidade. Em algum momento, você se torna um chato para seus amigos, pois eles não querem mais se encontrar com você, se a todo momento você profere uma crítica e manifesta alguma insatisfação.
- Eu já estive nessa situação, e vou lhes contar como conseguir sair dessa. No caso do café, eu comecei a beber café ruim. Eu não o fazia de propósito, nem partia em busca disso, apenas deixava acontecer, se assim fosse. Quer tenha acontecido num avião, num aeroporto, num hotel ou numa cafeteria. Eu não lutava mais contra isso, apenas bebia o café que estivesse a mão, ainda que fosse ruim. E vou te contar por que isso funcionou para mim.
“Sem um pouco de feiura, não pode haver beleza. Se tudo que você bebe é especial, então nada é especial.”
James Hoffman
- Eu precisava desse contexto, e acho que todos nós precisamos de um parâmetro assim. E dessa forma, podemos acordar, fazer um café e pensar... ah, eu gostaria que houvesse um pouco mais de doçura, um pouco mais de plenitude de sabor..., mas no final das contas ainda está incrível. Não estou dizendo que não devemos tentar fazer um café melhor, que não devemos buscar a perfeição. Apenas que não há problema em parar às vezes e apenas aproveitar o momento em que estamos inseridos.
- É preciso experimentar coisas ruins para poder desfrutar e aproveitar as maravilhosas, para lembrar o que as torna especiais.
- Essa é uma curva de vivência que você necessariamente passará quando aprender a degustar, pois ao aprender novas habilidades e elevar seu gosto, naturalmente seus padrões e referências ficarão bagunçados e distorcidos por um tempo.
Quando vi este vídeo, imediatamente me lembrei de algumas obras que me encantaram bastante durante a juventude, e escritas por dois gigantes intelectuais, e que infelizmente vieram a falecer há poucos anos.
A primeira é o livro “Beauty” (2009), escrito pelo filósofo inglês Sir Roger Scruton (1944-2020), e que virou o famoso documentário “Why Beauty Matters”, produzido pela BBC no mesmo ano.
Em sua crítica a banalização do conceito de arte, fica implícita a ideia trazida pelo seu conterrâneo James Hoffmann de que se tudo é especial, nada é especial. Afinal, se tudo puder ser considerado arte, logo, nada é arte, e dessa forma o conceito e distinção ficam totalmente esvaziados de qualquer valor e sentido.
Assim, tal como o belo é contraposto ao feio, e só faz sentido diante da existência deste, o saboroso apenas existe em oposição ao insípido e impalatável.
Essa ideia nos leva ao segundo autor, o filósofo, semiólogo e linguista italiano Umberto Eco (1932-2016), e também professor na Universidade de Bolonha, onde estudei por coincidência estudei durante um período enquanto ele ainda estava vivo, sem, no entanto, ter dado a sorte de encontrá-lo.
Em 2004 e 2007, Eco lançou dois livros complementares, “Storia della bellezza” e “Storia della bruttezza”, onde percorria sobre os conceitos belo e feio em diferentes locais e épocas ao longo da história.
Nesta obra, a feiúra, geralmente tratada de maneira simplória como a ausência de beleza, é vista de forma inebriante, inspiradora, assustadora e engraçada. Para o autor, a beleza é chata, enquanto a feiura vem em muitos sabores e cores, várias texturas e sons e imagens e palavras. É um buffet interminável de formas de se manifestar.
Há inclusive uma ironia quando notamos que o feio na arte é belo, quando ele é eficiente e criativo em apresentar a feiura. Uma pintura bem executada do inferno é frequentemente mais bela que uma deslumbrante Vênus mal desenhada.
Voltando ao tema café, é evidente que não há, tal como no exemplo, uma intenção consciente do produtor em obter um café “feio”, muito pelo contrário. Essa abordagem tem apenas por objetivo nos fazer perceber que é possível também apreciar uma xícara ruim, não apenas contemplando sua própria “feiura”, mas a utilizando de paradigma e contraponto para a beleza que existe em todo o processo, do broto ao fruto, passando por fermentação, secagem, torra, moagem, e extração, em parte um processo meticulosamente cuidado por seres humanos, noutra contando com a sorte do clima e terroir dado pela natureza, para então finalmente resultar numa excepcional xícara de café.
“Quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; quanto maior o conhecimento, maior a frustração.”
Eclesiastes 1:18 NVI
Assim, é importante tornar a jornada para o café especial (assim como qualquer outra que eleve nosso nível de consumo) agradável e positiva para toda a vida, e não um hobby de curto prazo que tão logo torna a alegria em dissabor e frustração.
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