Para Merleau-Ponty, ver é muito mais do que isso. O olhar é uma forma de habitação do mundo, um modo de ser que envolve todo nosso corpo. Uma pintura não está simplesmente diante de nós. Ela nos envolve, nos convoca, nos faz participar de seu mundo. A arte não é apenas algo que vemos, mas uma experiência que vivemos com todo nosso corpo.
O que significa ver com o corpo? Para Merleau-Ponty, mente e corpo não se separam. Não há divisão entre consciência e sensibilidade. Quando o pintor trabalha, não é apenas sua mente que concebe e sua mão que executa. Todo seu corpo pinta, respondendo às solicitações da tela e descobrindo possibilidades no encontro com as cores. O corpo do artista não é mero instrumento, mas o próprio lugar onde a obra nasce e o sentido se forma.
Um momento importante do pensamento de Merleau-Ponty se revela especialmente no conceito de "carne do mundo". Não somos espectadores externos que observam um mundo-objeto. Estamos mergulhados no mundo, fazemos parte de sua carne. O visível não é algo que está diante de nós, mas algo do qual participamos. Quando Cézanne pinta a montanha Sainte-Victoire não está representando um objeto externo, mas expressando seu encontro carnal com o visível. É uma experiência de co-pertencimento.
Como pensar, então, esta dimensão corporal da arte? Para Merleau-Ponty, a pintura não é uma representação do mundo, mas uma forma de fazer visível o próprio processo do ver. Ela é expressão, criação de sentido. Quando olhamos uma tela de Van Gogh, não vemos apenas um campo de trigo, vemos o próprio nascimento do visível, o momento em que o mundo se faz visão. A pintura não copia o mundo, ela nos mostra como o mundo vem a ser visível. Esta compreensão distingue radicalmente sua estética de debates representacionistas.
Outra abordagem significativa para o nosso debate é a noção de "quiasma" em sua obra tardia. Trata-se do entrelaçamento fundamental entre aquele que vê e aquilo que é visto, entre o corpo e o mundo, entre o visível e o invisível. Na experiência artística, não sabemos mais quem vê e quem é visto, há uma reversibilidade fundamental que faz com que sejamos tanto sujeitos quanto objetos da visão. É o que Merleau-Ponty chama de "enigma da visão".
Mas o que esta compreensão da arte como experiência corporal significa para nossa relação com as obras? Em primeiro lugar, nos liberta das abordagens puramente intelectualistas, que reduzem a arte a um exercício de interpretação conceitual. Uma pintura não é primordialmente um texto a ser decifrado, mas uma presença a ser experimentada corporalmente. Isso não significa, contudo, negar a dimensão intelectual da arte, mas reconhecer que ela emerge da experiência perceptiva. Em segundo lugar, nos mostra que a arte não é uma representação da realidade, mas uma forma de descobrir novas possibilidades do real, de criar sentido através da expressão.
E como pensar a dimensão corporal da arte em um mundo cada vez mais digital? Para Merleau-Ponty, mesmo as imagens mais abstratas ou tecnológicas ainda apelam para nossa experiência corporal do mundo. Não vemos apenas com os olhos, mas com todo nosso ser encarnado. Nossa percepção sempre mobiliza um saber corporal prévio, que ele chama de "esquema corporal".
Esta concepção da arte como experiência corporal e expressiva tem implicações profundas para a prática artística. Se criar não é representar um mundo já dado, mas participar do nascimento do visível e dar expressão a um sentido inédito, como pensar o papel do artista? Talvez o artista seja menos um criador de objetos e mais alguém que aprende a ver e fazer ver de novo, que descobre novas dimensões do visível. A expressão artística é sempre criação, não comunicação de um sentido preexistente.
O pensamento de Merleau-Ponty sobre a arte dialoga intensamente com a própria prática dos artistas. Quando Cézanne diz que a natureza está no interior, não está fazendo uma afirmação mística, mas descrevendo essa experiência fundamental de entrelaçamento entre corpo e mundo que a pintura revela. É um testemunho dessa reversibilidade entre o vidente e o visível que constitui o núcleo da experiência estética.
Esta dimensão ontológica de seu pensamento nos leva a outra questão fundamental: a relação entre visível e invisível na arte. O invisível não é o oposto do visível, mas sua profundidade, sua dimensão interior. Uma pintura não mostra apenas o que é visível, mas torna sensível o invisível que habita o visível. A pintura não representa o mundo, mas torna visível uma certa relação com o ser.
A filosofia da arte de Merleau-Ponty se insere no projeto mais amplo de sua fenomenologia. Busca superar as dicotomias clássicas entre sujeito e objeto, mente e corpo, percepção e pensamento. Mas, afinal, o que acontece quando verdadeiramente vemos uma obra de arte? Talvez aconteça precisamente um momento de reconhecimento de nossa participação na carne do mundo, uma experiência de entrelaçamento onde não sabemos mais quem vê e quem é visto.
“É o mistério da criação artística como expressão.”
Nesse sentido, arte não é um objeto que contemplamos à distância, mas uma experiência que nos transforma porque revela nossa pertença fundamental ao visível. Ver uma obra de arte é participar de uma aventura onde nosso corpo descobre novas formas de habitar o mundo, onde o sentido nasce da experiência expressiva. A arte nos mostra, afinal, que ver é sempre mais do que ver, é participar do milagre da expressão.
Postado em: