Você já percebeu como as roupas mudam de significado ao longo do tempo? O que antes era subversivo, até associado ao diabo, pode se tornar algo básico e comum — e o contrário também acontece.
A camiseta básica, por exemplo, começou como peça íntima e causou alvoroço quando passou a ser usada casualmente. O jeans, criado para trabalhadores braçais, se transformou em símbolo de liberdade e contracultura nos anos 1950. E as listras, que antes eram vistas como algo diabólico, hoje são consideradas uma estampa básica.
Listras diabólicas? Oi?
Sim, é isso mesmo! No livro O Pano do Diabo, Michel Pastoureau mergulha na história dessas estampas, que, no passado, eram usadas apenas por pessoas à margem da sociedade, associadas ao pecado e ao diabo. As listras, ao longo dos séculos, passaram a ter novas interpretações, refletindo as mudanças culturais e sociais.
Pastoureau nos mostra, de maneira leve e acessível, como roupas e tecidos, com suas cores e formas, podem carregar significados profundos que mudam conforme o contexto histórico. Na Idade Média, o tecido liso representava o comum, a “norma”, enquanto as listras eram vistas como sinônimo de desordem, ruído e impureza.
Na Idade Média
Tudo começou em 1254, quando o rei São Luís retornou à França com religiosos carmelitas usando mantos listrados, o que causou grande estranhamento. A dificuldade em perceber onde começava ou terminava a cor dos mantos fez com que os carmelitas fossem acusados de hipocrisia e até de serem aliados do Diabo. As listras passaram a ser associadas ao pecado e à transgressão.
No século XIII, o uso de roupas listradas foi imposto a bastardos, servos, condenados e heréticos, sendo um símbolo de segregação social. O diabo e suas criaturas também eram frequentemente representados em vestes listradas, e até mesmo zebras eram vistas como símbolos de mal.
A partir de 1300, as listras começaram a ser usadas em brasões e símbolos de famílias, mas ainda eram vistas como algo de menor prestígio, embora com um novo simbolismo a partir de variações: horizontais, verticais, onduladas e barradas.
A nova ordem das listras
Na época moderna, as listras passaram a ter novos significados e usos. Elas foram além das roupas e se espalharam pela decoração, mobiliário, higiene e até pela marinha, ganhando diferentes interpretações — desta vez, nem sempre negativas.
A listra doméstica
Com a transição da Idade Média para a Idade Moderna, as listras deixaram de ser associadas ao diabo, mas passaram a simbolizar uma condição servil ou de função subalterna. Nesse período, as listras começaram a ser associadas aos africanos e índios da América, que, independentemente de sua posição social, passaram a ser representados com esse padrão, especialmente após o início da escravidão no século XVI. As listras se tornaram uma marca distintiva dos povos "distantes" da civilização.
Durante o Antigo Regime, as listras eram amplamente usadas nas vestimentas dos servos, com destaque para o colete listrado verticalmente. Embora hoje essa peça tenha caído em desuso, ela ainda aparece no cinema, nas caricaturas e em histórias em quadrinhos, como no personagem Nestor, o mordomo das aventuras de Tintin.
Outro exemplo da popularização das listras foi o seu uso em uniformes civis e militares, marcando um símbolo de subordinação, mas com uma nova conotação social.
As listras românticas e revolucionárias
As listras, ao longo da história, passaram por várias transformações de significado. No século XIV, após a Grande Peste, a juventude nobre começou a usar excessos vestimentares, e as listras se tornaram um símbolo aristocrático, embora ainda houvesse uma separação: as listras verticais eram nobre e as horizontais associadas aos serviçais.
No entanto, com a Reforma e a Contra-Reforma, as listras voltaram a ser vistas com desprezo.
Mas, a partir de 1775, surgem as listras românticas e revolucionárias, especialmente com a independência dos Estados Unidos, simbolizando liberdade e revolução. Na França, as listras passaram a representar o movimento da Revolução Francesa e a formação do distintivo tricolor.
Vale ressaltar que as listras têxteis estão fortemente conectadas à história da tecnologia. A mecanização do tear contribuiu para a difusão dos tecidos listrados no fim do século XVIII e início do século XIX.
A Listra Contemporânea: De Segregação à Reintegração
No século XVIII, as listras ganharam outra conotação. Utilizadas para diferenciar e marcar os prisioneiros, elas passaram a ter um caráter punitivo, isolando os condenados e retirando-lhes a dignidade, como no caso dos campos de concentração nazistas.
Na esfera pública, as listras se tornaram sinônimo de controle, sendo usadas para classificar e organizar a sociedade. Porém, elas também têm um papel simbólico de reinclusão. A presença das listras no uniforme de prisioneiros, por exemplo, não apenas os exclui, mas também os coloca de volta em um processo de reintegração e disciplina.
Os Marinheiros e a Transformação das Listras
No século XVII, os marinheiros começaram a usar túnicas listradas como parte de seus uniformes. Inicialmente associadas à hierarquia inferior e aos trabalhadores braçais, as listras eram uma forma de marcar a posição social dos tripulantes. Interessante notar que, mesmo hoje, os oficiais da marinha francesa chamam de "zebras" aqueles que não saem das escolas navais, refletindo o simbolismo das listras como uma marca de pertencimento a uma classe inferior.
No entanto, ao longo do tempo, as listras passaram a ser associadas aos prazeres da praia e ao lazer, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, tornando-se sinônimo de elegância e bom gosto - apesar da desaristocratização destas, já que a praia é frequentada por todos os tipos de classes sociais.
A Listra no esporte, na juventude e… na higiene
As listras se associaram ao esporte e à juventude no século XIX e XX, com seu uso em uniformes de equipes e atletas, simbolizando dinâmica e competição.
No universo esportivo, as listras compartilham várias características com o mundo infantil: são sinaléticas, higiênicas, lúdicas, estivais e associadas à juventude dinâmica. No entanto, no esporte, elas ganham também uma função emblemática. As listras ajudam a identificar o atleta, marcando sua ligação com uma equipe, clube, cidade, região ou país, tornando-se um símbolo de pertencimento e união.
No universo infantil, as listras tornaram-se também símbolo de alegria, higiene e limpeza. Um exemplo clássico é o dentifrício Signal, que utilizava o design listrado para tornar a escovação de dentes mais lúdica e divertida.
Além disso, as listras também passaram a ser vistas como um símbolo de pureza e higiene. Durante séculos, a cor das roupas de baixo era tabu — a roupa íntima precisava ser branca ou crua, associada à pureza. No entanto, a transição para roupas coloridas e listradas foi gradual, ocorrendo ao longo do século XIX. As listras tornaram-se, assim, uma forma de cor purificada, uma “semicor” que representava a limpeza e a moralidade.
Nada na moda é estático
De marinheiros a prisioneiros, de atletas a crianças, as listras carregam consigo uma longa história de exclusão e reintegração. Embora em diferentes momentos da história elas tenham simbolizado tanto a marginalização quanto a renovação social, as listras permanecem uma parte importante da moda e da cultura.
Essas transformações nos ensinam que nada é neutro no vestuário. Cada padrão e cor carrega um peso cultural e histórico, comunicando mais do que apenas estilo. O que vestimos diz muito sobre nossa identidade, nossos valores e nosso desejo de pertencimento ou de diferenciação. Assim, ao escolher nossas roupas, somos constantemente convidados a refletir sobre o que estamos realmente dizendo ao mundo, não só por um significado individual, mas sobretudo coletivo.
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