O ano era 1974. Eu tinha 18 anos e esperei ansiosamente pela estreia do clipe da música “Águas de março” interpretada por Tom Jobim (1927-1994) e Elis Regina (1945-1982) numa noite de outubro no programa “Fantástico” na Rede Globo. Esse era o programa da família daquela época e em nossa casa não era diferente. Dava 8 da noite de domingo, nos aboletávamos todos no sofá da sala para ver as maravilhas apresentadas pelo programa.
Durante toda a semana que antecedeu à estreia do clipe, a emissora anunciou com frequência avassaladora o que estava por vir. Era um outro Brasil e este país no dia seguinte só falava disso. Estava claro que naquela noite fantástica nascia uma nova Aquarela do Brasil, até então o grande hino da música popular brasileira.
Na época eu cursava Letras na Federal e nunca me esqueço que a partir daquele dia, o “chiquê” era ter um violão em mãos e saber dedilhar os acordes (ostinato) da bela música de Jobim, e mais “chiquê” ainda era saber cantar a intrincada letra, soberbamente defendida pela musa de todos de então, Elis Regina.
Tentávamos decifrar o que havia por trás daquela letra enigmática, composta por um dos maiores músicos da bossa nova de todos os tempos – e soberbamente interpretada pela vocalista mais popular do Brasil em sua época.
Juntos eles uniram forças em um estúdio de gravação de Los Angeles, por se tratar de um ambiente mais relaxado e propício para a criatividade e foi durante os meses de fevereiro e março de 1974, ou seja, há exatamente 50 anos, que nasceu o álbum Elis & Tom. Álbum considerado uma obra-prima da música brasileira e, para mim e muitos outros terráqueos, considerado também o melhor álbum de MPB já gravado em todos os tempos.
A apresentação da música no "Fantástico" trouxe uma grande visibilidade para a obra de Tom Jobim, alcançando um amplo público e consolidando ainda mais sua reputação como um dos maiores músicos brasileiros e a interpretação juntamente com Elis Regina, foi aclamada pelo público e pela crítica, contribuindo para popularizar ainda mais a música e o álbum que ela encabeçava.
Desde então, "Águas de Março" se tornou uma música clássica atemporal, sendo interpretada por inúmeros artistas e regravada em diferentes estilos e línguas ao redor do mundo. Sua inclusão no programa "Fantástico" foi um momento marcante na história da música brasileira e continua a ser lembrada e celebrada até os dias de hoje.
A gravação do álbum em Los Angeles
Esse encontro de “Titãs” na verdade quase não aconteceu. Reza a lenda que foram muitos os percalços que levaram até a edição final do álbum e que foi extremamente difícil reunir Elis e Tom e criar entre eles um clima de simpatia e de positividade. Conta-se que desde o emocionante abraço entre os dois, no aeroporto de Los Angeles, até o tocante e sincero beijo do final das gravações, houve muita tensão no estúdio.
Ao longo do processo aconteceram algumas desavenças artísticas e o motivo principal girou em torno do então marido da cantora, o arranjador e pianista César Camargo Mariano que Elis insistia que participasse das gravações, mas que Jobim recusava a aceitar as sugestões, desprezando abertamente suas ideias desde o início questionando o gosto de Cesar Camargo pelos pianos elétricos e desconfiando de sua capacidade de fazer os arranjos do álbum em questão.
A ideia para a gravação de "Elis & Tom" partiu de Aloysio de Oliveira, produtor musical brasileiro que trabalhava na gravadora Philips (atual Universal Music). Aloysio teve a visão de unir os dois artistas em um projeto colaborativo.
A partir dessa ideia, ele organizou e supervisionou a produção do álbum procurando criar condições ideais para que todos pudessem se concentrar na música e explorar livremente suas ideias, o que resultou em uma das colaborações mais célebres da música popular brasileira.
Outro fator muito importante para a grande qualidade artística alcançada foi a participação ativa dos músicos Hélio Delmiro (Violão), Luizão (Baixo), Paulinho Braga (Bateria) e Oscar Castro Neves (Violão e Guitarra), sendo esse último considerado fundamental para complementar as vozes das duas estrelas da MPB, ajudando a criar os sofisticados arranjos que tornaram o álbum tão especial.
Apesar de um começo de gravação um tanto irascível, especialmente da parte do genial compositor, o ambiente de gravação do álbum poderia ser descrito como descontraído e altamente colaborativo e as sessões de gravação foram caracterizadas por uma atmosfera intimista, com os artistas compartilhando ideias, experimentando arranjos e colaborando de forma aberta e espontânea. Elis e Tom estavam profundamente envolvidos no processo criativo, contribuindo com suas habilidades únicas e interpretando as canções com paixão e emoção.
Ao longo das gravações, ambos demonstraram um profundo respeito mútuo e uma admiração genuína pelo talento um do outro, o que se refletiu na qualidade e na autenticidade das performances e dessa “mais que perfeita colaboração” nasceram 14 faixas que se tornaram antológicas.
- “Águas de março”, de Tom Jobim
- "Pois é", de Tom e Chico Buarque de Holanda
- "Só Tinha de Ser com Você", de Tom e Aloysio de oliveira
- "Modinha", de Tom e Vinicius de Moraes
- "Triste", de Tom Jobim
- “Corcovado”, de Tom Jobim
- "O Que Tinha de Ser", de Tom e Vinicius de Moraes
- "Retrato em Branco e Preto", de Tom e Chico Buarque de Holanda
- "Brigas, Nunca Mais", de Tom e Vinicius de Moraes
- "Por toda a Minha Vida", de Tom e Vinicius de Moraes
- “Fotografia", de Tom Jobim
- "Soneto de Separação", de Tom e Vinicius de Moraes
- "Chovendo na Roseira", de Tom Jobim
- “Inútil Paisagem”, de Tom e Aloysio de Oliveira
Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você
Para os saudosistas e curiosos de plantão sugiro assistirem ao filme “Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você”, dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, lançado em 10 de outubro de 2022 que acompanha os caminhos dos dois artistas e seu tempo no estúdio.
No filme os diretores mostram o sucesso de Jobim no mercado norte-americano quando a bossa nova começou seu boom nos anos 60, tocando com Frank Sinatra e com o jazzista Ron Carter. De certa forma, ele fez sucesso nos EUA e depois voltou para o Brasil. Vemos ali a carreira de Regina e sua versatilidade como vocalista e temos uma noção dos perigos de uma carreira internacional no Brasil daquela época– os longos voos para sair em turnê; o escárnio dos brasileiros que os viam essencialmente como vendidos; durante uma ditadura militar no Brasil que durou mais de vinte anos. O filme mostra os dois como opostos estéticos.
Os momentos em que podemos ver Elis e Tom preenchendo lacunas em seus estilos e princípios artísticos para fazer o álbum – e, por sua vez, desenvolver um vínculo pessoal – são uma visão e um som para serem vistos e vividos e se emocionar com este grande momento da Arte brasileira.
Sem uma linha temporal muito definida, o filme salta do ano de 1974, para a década de 1960, em seguida para a de 1980 até os dias de hoje. Tudo isso serve muito bem para se ter uma breve noção do legado desses artistas dentro de uma jornada de pingue-pongue de 100 minutos através de suas carreiras.
Vale muito a pena conferir.
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