Imagina: mais de um ano projetando e criando uma obra de arte de grandes dimensões. Quando digo grandes, quero dizer quase 20 metros de altura por cerca de 3 metros de largura. Imagina trabalhar com uma equipe de até 100 pessoas, expor esse trabalho incrível ao ar livre, para o deleite da sua comunidade — e, com carinho, ativar o desapego por essa obra, aceitando sua queima em homenagem a uma das maiores tradições históricas da Espanha. Hoje te conto mais sobre a festa das FALLAS.
A história dessa impressionante tradição remonta ao século XVIII. Diz-se que as Fallas nasceram de um antigo costume dos carpinteiros de Valência:
- No dia 19 de março, dia de São José (padroeiro dos carpinteiros), os carpinteiros queimavam na rua os trastes velhos e restos de madeira dos seus ateliês, para celebrar o fim do inverno e fazer uma limpeza.
- Costumavam colocar esses objetos em uma espécie de figura com forma humana chamada parot (uma estrutura de madeira onde penduravam suas lamparinas a óleo durante o inverno).
- Com o tempo, essa figura foi ganhando expressividade: adicionavam roupas, elementos decorativos... e começaram a criar personagens satíricos.
- Assim nasceram os ninots, que com o tempo evoluíram até se tornarem verdadeiras obras de arte, como as que vemos hoje.
No início, alguns ninots tinham a intenção de criticar figuras públicas da época, e como se tratava de uma crítica visual, as autoridades municipais decidiram, em 1851, que os esboços dos monumentos deveriam passar por censura prévia. Com essa nova regulação, durante a segunda metade do século XIX, tornou-se comum a chamada “falla erótica” — sátiras sobre o casamento, os flertes entre homens e mulheres ou as relações sexuais; ainda assim, também se viam monumentos com crítica política, tom apologético ou humorístico.
Na queima de uma das fallas em 1985, com forte conteúdo crítico às políticas africanistas, a festa terminou em uma verdadeira manifestação, que precisou ser dissolvida pela própria polícia. Após esse conflito, e entrando no século XX, surgiu com força a chamada falla artística, impulsionada principalmente pela criação, em 1901, dos prêmios ao melhor monumento fallero concedidos pela prefeitura de Valência.
Esse fato, que valorizava o aspecto artístico em detrimento do crítico (tão incômodo na época), incentivou os falleros a criarem fallas mais belas esteticamente — e, por consequência, a buscar bons artistas para produzi-las. Foi assim que nasceu a semente de uma nova profissão: o artista fallero. Muitos desses profissionais (em sua maioria escultores, pintores e carpinteiros) acabaram se dedicando exclusivamente à criação das fallas.
Essa tradição enraizada — declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO — segue como uma grande órbita de alegria, admiração, orgulho e festa popular. Continua sendo celebrada anualmente por todas as ruas da Comunidade Valenciana, na Espanha.
Como espectadora, sempre admirei muito essa tradição pelo aspecto de renovação de energia — esse exercício de desapego do trabalho, esse amor pela arte que se concretiza na queima das fallas, abrindo espaço para novas energias, novos começos. É uma sinergia criada entre visitantes, falleros, turistas e moradores locais, que se reúnem por três dias para celebrar o trabalho de todo um ano.
É admirável ver como essa grande obra de arte se espalha pela cidade, criando um verdadeiro museu a céu aberto — gratuito e de qualidade. A experiência é acompanhada por grandes queimas de fogos, bandas tocando pelas ruas, falleros e falleras com seus trajes tradicionais... e um cheiro de paella e churros que nos guia por todo esse museu vivo.
É uma daquelas experiências que se deve viver pelo menos uma vez na vida. Porque nos lembra o quão efêmeros somos no mundo — e, ao mesmo tempo, o quão importantes também somos dentro dele.
Para sentir ainda mais de perto a intensidade dessa tradição, vale assistir a este belo registro das Fallas — arte, fogo e emoção em cada segundo: assista aqui.
Postado em: