Como uma obra pode problematizar as próprias condições da representação? Como palavras e imagens podem travar uma batalha silenciosa no espaço da representação? E o que significa dizer que um cachimbo não é um cachimbo? Estas questões nos conduzem ao pensamento estético de Michel Foucault, especialmente em sua análise da obra La Trahison des Images, de René Magritte, e de Las Meninas, de Diego Velázquez, onde o filósofo descortina relações entre linguagem, imagem, conhecimento e poder.
Quando nos deparamos com a pintura de Magritte que mostra um cachimbo e, abaixo dele, a frase em francês "Ceci n’est pas une pipe", ou seja, “Isto não é um cachimbo”, nossa primeira reação é de perplexidade. Como pode não ser um cachimbo, se estamos vendo claramente um cachimbo? Ou será essa pintura de Magritte como uma daquelas imagens que uns veem um pato enquanto outros veem um coelho? Não se trata disso. Magritte mesmo pergunta: “Vocês podem encher de fumo o meu cachimbo?”
Para Foucault, no texto Isto não é um cachimbo, é precisamente neste desconforto que reside a potência da obra de arte. O que o filósofo salienta não é somente uma negação, mas uma problematização da relação entre imagem e linguagem. A obra, nesse sentido, expõe uma crise na ordem da representação, revelando o abismo que existe entre as palavras e as coisas, entre o que vemos e o que dizemos.
Mas o que está realmente em jogo nesta aparente contradição? O cachimbo pintado, de fato, não é um cachimbo, é uma imagem de um cachimbo. A frase que problematiza sua existência é, paradoxalmente, a única afirmação verdadeira na obra. Este jogo entre verdade e representação nos sugere questionar as certezas que temos sobre a relação entre a linguagem e o mundo. Afinal, quando dizemos "cachimbo", a que exatamente nos referimos?
Na análise de Foucault, temos presente o caráter político da operação artística. Não se trata apenas de um jogo intelectual ou de um paradoxo visual, mas de uma subversão das relações de poder que estruturam nossa forma de ver e nomear o mundo. A obra de Magritte, ao romper a ligação aparentemente natural entre palavras e imagens, expõe o caráter arbitrário e historicamente construído de nossas formas de representação.
Como pensar, então, esta dimensão política da representação? Para Foucault, as formas como nomeamos e representamos as coisas não são inocentes ou naturais, são resultado de relações de poder que estabelecem o que pode ser visto, dito e pensado em cada época. Quando Magritte pinta um cachimbo e o nega através da linguagem, ele está expondo estas relações de poder, tornando visível o invisível jogo de forças que determina nossas formas de representação.
O conceito de "caligrama desfeito" em sua análise merece particular atenção. O caligrama é uma forma poética onde as palavras formam a imagem daquilo que descrevem. Por exemplo, um poema sobre uma árvore escrito no formato de uma árvore. Magritte, segundo Foucault, desloca esta unidade tradicional entre ver e ler, entre o signo e seu referente, criando um espaço de tensão onde palavra e imagem se confrontam em vez de se complementarem.
Mas o que significa este confronto entre palavra e imagem para nossa compreensão da arte? Em primeiro lugar, nos mostra que a arte não é um espaço de harmonia e reconciliação, mas de conflito e tensão. Em segundo lugar, revela que nossas formas de representação não são neutras, elas carregam consigo toda uma história de poder e dominação.
Contudo, como resistir ao poder da estrutura arbitrária das representações? Como não aceitar o padrão de beleza, por exemplo, que nos é sugerido pelos meios de comunicação desde a infância? O padrão estético da princesa, o padrão estético do vilão? Para Foucault, a arte tem um papel fundamental nesta resistência, não por oferecer representações mais verdadeiras, mas por expor o caráter construído e político de toda representação.
Este pensamento sobre a relação entre arte e poder tem implicações profundas para a prática artística contemporânea. Se toda representação é política, como pensar uma arte que não reproduza as relações de poder dominantes? Talvez a resposta esteja precisamente na capacidade da arte de criar espaços de tensão e contradição, onde as certezas estabelecidas podem ser questionadas.
Mais do salientar o papel político de quem produz a arte, esse debate sugere questionar também o papel do espectador, que Foucault aprofundará na análise de outra obra de arte, de Velázquez. Não somos apenas observadores, passivos, de uma representação, mas participantes, ativos, em um jogo de poder onde o que está em disputa é o próprio sentido do que vemos e dizemos. Nesse sentido, já em Magritte o espectador é convocado a questionar suas próprias certezas sobre a relação entre as palavras e as coisas.
Em sua leitura da obra de Magritte, Foucault nos mostra como a arte pode ser um espaço de experimentação com as formas estabelecidas de poder e saber. O foco aqui se apresenta no sentido de expor as relações de poder que tornam possíveis certas formas de representação e impossibilitam outras.
A filosofia da arte que emerge desta análise é profundamente política, mas não no sentido de uma arte engajada que pretende transmitir mensagens políticas. É política porque revela o caráter político de toda representação, porque expõe as relações de poder que estruturam nossa forma de ver e dizer o mundo.
No contexto contemporâneo das IA’s e, mais precisamente na era das deepfakes onde imagens, sons, palavras, vídeos são constantemente manipulados para produzirem uma roupagem crível como se fosse uma verdade, o pensamento de Foucault sobre a arte nos provoca a resistir. Sua análise nos mostra que a arte pode ser um espaço de liberdade por nos permitir questionar o próprio regime de verdade que governa nossas representações.
Afinal, o que resta quando um cachimbo não é um cachimbo? Resta precisamente a possibilidade de pensar diferentemente, de questionar as evidências que nos parecem mais naturais, de imaginar outras formas de ver e dizer o mundo. Ou seja, Foucault extrai de sua análise de Magritte que a arte não nos oferece verdades, mas nos abre possibilidades de questionar as verdades estabelecidas.
Após essas breves reflexões podemos dar um passo adiante. Agora, diante da obra As Meninas, de Velázquez, o que realmente vemos? Um ateliê, um grupo de personagens, um jogo de espelhos e reflexos? E, acima de tudo, onde está o sujeito que olha? O ponto de fuga da composição parece nos chamar para dentro da cena, mas também nos desloca. O espelho ao fundo reflete os reis da Espanha, mas seriam eles os verdadeiros espectadores? Ou nós, que olhamos a pintura, ocupamos esse lugar? A pintura nos envolve em um paradoxo: somos voyeurs da cena ou parte dela? A pintura não apenas representa, mas interroga a si mesma e ao ato de ver.
Foucault, em As palavras e as coisas, vê em As Meninas uma operação sofisticada sobre a representação. A obra não se limita a nos oferecer uma imagem, mas nos força a questionar a própria estrutura do ver. Diferente de Magritte, cuja obra revela a problematização entre palavra e imagem, Velázquez nos coloca no centro de um problema igualmente inquietante: o olhar, em sua própria natureza, é um jogo de posições e deslocamentos. Quem vê e quem é visto? Quem ocupa o centro da cena e quem está excluído dela?
A disposição dos personagens e do espaço em As Meninas sugere uma coreografia do olhar. A infanta Margarita está em destaque, cercada por suas damas de companhia, um anão e um cão. Velázquez, o pintor, se insere na cena, pincel na mão, como se estivesse a meio caminho da criação. Mas o que ele pinta? O quadro que está diante dele está voltado para nós, espectadores invisíveis. Assim, Foucault nos leva a perceber que o verdadeiro protagonista de As Meninas é a própria representação, aquilo que nunca pode ser plenamente capturado por um único ponto de vista.
Mas qual é a implicação dessa estratégia? Para Foucault, a ponto central da obra As Meninas não é o exercício técnico do pintor, e sim uma cena que expõe as estruturas de poder e conhecimento que organizam aquilo que é visível. A pintura do século XVII está profundamente enraizada no regime da representação clássica, onde o mundo é ordenado por categorias estáveis de identidade e posição. Contudo, Velázquez, com sua composição enigmática, sugere uma ruptura nessa ordem: não há mais um lugar fixo para o olhar, mas um campo dinâmico de relações e deslocamentos. A cena não se fecha sobre si mesma, mas se abre para a incerteza.
Nesse sentido, As Meninas antecipa uma mudança nos debates sobre as teorias do conhecimento. A partir do século XIX, com o declínio do modelo clássico de representação, o sujeito deixa de ser o ponto estável do conhecimento e passa a ser problematizado. Foucault sublinha que, ao deslocar o centro da representação, Velázquez já anunciava essa transição. O que a pintura nos oferece não é uma certeza, mas um enigma: onde estamos, afinal, nessa rede de olhares? Se o quadro que Velázquez pinta está fora da tela, será que ele nos pinta? E, se nos pinta, o que isso diz sobre o lugar que ocupamos na ordem do visível?
Se em Magritte o cachimbo não é um cachimbo, em Velázquez a imagem não é apenas um reflexo do mundo, mas uma interrogação sobre o próprio ato de representar. A pintura se dobra sobre si mesma, expondo as condições de sua própria possibilidade. E, ao fazer isso, nos lança em uma reflexão mais ampla: o que significa ver e ser visto? Como nossos modos de representação determinam o que pode ser conhecido?
Diante disso, pode-se considerar que, para Foucault, a arte não apenas reflete o mundo, mas nos provoca a questionar os regimes de verdade que governam o visível. Como disse o próprio Magritte a respeito da obra dele que comentamos no início desse texto, “se eu tivesse escrito sob o meu quadro: ‘isto é um cachimbo’, eu teria mentido”. Já a pintura de Velázquez, ao nos devolver nosso próprio olhar sob a forma de um enigma, nos obriga a encarar a instabilidade do que tomamos como certo. Afinal, o que resta quando o olhar que julgávamos fixo se dissolve na própria trama da representação?
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