Sempre admirei Ney Matogrosso não apenas pelo artista tecnicamente impecável que é, com uma voz marcante e presença cênica magnética, mas também pela figura pública que desafiou normas e expectativas desde o início de sua carreira. Desde os tempos do Secos e Molhados, em 1973, Ney demonstrou domínio absoluto de palco, uma fisicalidade ousada e uma energia que impressiona ainda hoje, aos mais de 80 anos.
Mais do que um cantor, Ney é um símbolo de resistência. Em uma sociedade que impõe padrões rígidos de masculinidade — onde homem não chora, não dança, não se maquia e não canta com suavidade — ele surgiu, em plena ditadura militar, como uma figura transgressora e indomável. Sua existência pública foi, por si só, um ato de coragem. Ney chutou as portas da repressão cultural com graça e força, mostrando que ser homem também é ser livre.
O filme que espelha a ousadia
Por isso, era inevitável que sua trajetória acabasse se tornando um filme. Homem com H, cinebiografia dirigida e roteirizada por Esmir Filho, traz Jesuíta Barbosa no papel principal — e sua entrega é admirável. O longa tem seus tropeços típicos do gênero, mas surpreende por conseguir preservar a alma do biografado. Mesmo caindo em armadilhas narrativas, o filme funciona.
Há um carinho perceptível na forma como Esmir conduz a narrativa. Ao invés de idolatrar cegamente, ele opta por um respeito genuíno, o que torna o resultado muito mais honesto. O filme celebra o espírito livre de Ney, seu embate com os padrões de masculinidade e com o pai autoritário, além da repressão do regime militar. Mais do que uma história sobre homossexualidade, Homem com H aborda uma questão ainda mais estrutural: a ideia imposta do que é ser homem.
A masculinidade em confronto
O roteiro é eficaz ao retratar como Ney foi opondo sua identidade a tudo que a sociedade e o pai esperavam dele. O filme mostra — sem didatismo — que ser homem, segundo essas normas, é manter a voz firme, o rosto sério, o cabelo curto, o corpo ereto e a alma contida. Ney rejeita tudo isso com uma força que inspira. Ele decide ser ele mesmo, mesmo que isso signifique escândalo, censura ou violência. Sua performance se torna, então, um gesto político: “A ditadura não gosta de eu remexer a pélvis? Dane-se, eu vou remexer”.
Nesse sentido, o filme transforma a ditadura em símbolo dessa repressão contra a masculinidade livre. Ney é o corpo que resiste, que provoca, que desafia. E o longa acerta ao deixar isso claro, ao mesmo tempo que revisita sua história com afeto, sem transformá-lo em santo ou mártir.
O que não funciona
O problema, no entanto, é que o filme escorrega onde tantas cinebiografias já escorregaram: excesso de letreiros, marcações temporais forçadas e falta de fluidez narrativa. Em vez de construir uma história que leva naturalmente de um momento ao outro, ele se apoia em legendas que nos dizem onde estamos — quase como uma leitura apressada da Wikipédia.
Além disso, a indecisão sobre qual conflito deve encerrar a narrativa enfraquece o desfecho. A resolução da relação entre Ney e o pai, por exemplo, soa apressada e até condescendente. Depois de um filme inteiro mostrando um pai violento e repressor, não basta um gesto ambíguo para redimi-lo. Fica a sensação de que faltou coragem para sustentar o peso do confronto até o fim.
Apesar desses problemas, Homem com H é um dos bons filmes brasileiros recentes. Muito disso se deve à atuação poderosa de Jesuíta Barbosa, que encarna Ney com impressionante precisão vocal e corporal. O desfecho, mesmo não sendo perfeito, transmite uma admiração contagiante pelo artista retratado — e nesse ponto, o filme faz jus ao seu protagonista.
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