10% OFF na primeira compra.

Troca fácil em até 30 dias

Por que o cotidiano se torna arte?

Um par de sapatos na vitrine de uma loja pode ser considerado uma obra de arte? Ou, ainda, será que a simples transferência de um par de sapatos para uma tela faz com que ele ganhe status de obra de arte? Quando vemos as pinturas de sapatos de Van Gogh, por que nos sentimos inclinados a atribuir-lhes um valor estético que, no cotidiano, os sapatos não teriam? O que diferencia uma obra de arte de um objeto prosaico?

van gogh

7 minutos

A resposta não é simples. A obra de Van Gogh é mais do que uma representação precisa de um par de sapatos. Ela carrega consigo algo que os sapatos reais jamais poderiam nos oferecer: uma revelação. Para Heidegger, a transformação de objetos cotidianos em obras de arte resulta de um processo que revela a verdade do ser (Aletheia), uma desocultação que vai além da utilidade funcional e do sentido aparente. O que faz com que objetos prosaicos sejam considerados obras de arte está enraizado não apenas na criação do objeto, mas na maneira como ele revela algo essencial do ser, ao permitir ao observador uma experiência que transcende o ordinário e o funcional. Heidegger entende que a obra de arte, longe de ser apenas um objeto decorativo ou algo funcional, é um campo de revelação de verdades profundas sobre o mundo e sobre a existência humana.

A origem da obra de arte é, portanto, a própria arte, que se manifesta por meio do artista e do objeto criado, e o que faz uma obra ser arte não reside no objeto em si, mas no ato de criação e no efeito de revelação que ela desencadeia. O artista, ao criar uma obra, não age como mero produtor de algo útil ou decorativo, mas como alguém que abre o caminho para que o ser se manifeste de forma singular. Assim, o artista e a obra só existem mutuamente por causa da arte, é ela que possibilita que o criador se reconheça como tal e que o objeto seja mais do que uma coisa prosaica. O artista age em um contexto criado pela própria arte, um espaço onde a criação se eleva para além das limitações da produção utilitária.

No cotidiano, o objeto prosaico tende a sumir à medida que cumpre sua função. Sapatos, por exemplo, não exigem nossa atenção enquanto andamos, pois sua presença se dissolve no ato de caminhar. Eles existem para servir, sendo percebidos apenas quando falham em sua tarefa — quando apertam ou se desgastam. Na funcionalidade, o objeto utilitário se esvazia de significado estético e simbólico, pois sua relevância é limitada ao uso imediato. Assim, o objeto prosaico desaparece na rotina, sem nos despertar para nada além de sua utilidade prática.

Na produção artística, o artista não apenas transforma a matéria, mas instaura uma presença do ser que carrega significados e verdades ocultas, desafiando a própria noção de objeto cotidiano. Esta criação envolve um entrelaçamento de um combate que o filósofo chama de combate entre Terra e Mundo. A Terra representa o desconhecido, o oculto e o misterioso, enquanto o Mundo se refere ao já conhecido, ao que foi trazido à clareira do entendimento humano. O combate entre Terra e Mundo é o que confere à obra sua profundidade e significado, pois a arte acontece exatamente nesse limite onde o ente, antes encoberto, se revela.

No caso de objetos simples, como um par de sapatos, Heidegger exemplifica como a obra de arte os transcende para que se tornem símbolos de uma realidade mais profunda e experienciável, uma ideia exposta em sua análise da pintura de Van Gogh. Os sapatos pintados por Van Gogh não são meramente reproduzidos, eles projetam a verdade do ser da obra e, concomitantemente, também do ser do utensílio representado, na relação dele com o mundo do camponês que os usou, revelando a dureza do trabalho no campo, a umidade da terra, e até mesmo a solidão da jornada. O simples utensílio, ao ser representado na obra, transforma-se em uma via para o espectador acessar verdades sobre a condição humana, a luta e o sofrimento.

Nesse sentido, a verdade que a obra de arte projeta difere substancialmente da verdade científica (Veritas) que visa a precisão e a objetividade. A verdade como Veritas oculta, ao projetar rótulos, classificações, conceitos. Na arte, a verdade é aletheia, ou seja, um ato de desocultação, no qual o que estava encoberto vem à tona. Essa verdade não é uma reprodução literal do real, mas uma revelação que permite ao observador uma experiência sensorial e interpretativa singular. A obra de arte, assim, não busca imitar ou representar a realidade objetiva, mas instaurar um novo campo de compreensão que só é possível através da contemplação estética, onde o espectador se abre a uma nova maneira de ver e entender.

A relação entre o contemplador e a obra é fundamental para que a verdade que ela porta se revele. Heidegger afirma que há diferentes graus de contemplação, e que o mais básico, o simples prazer estético, não esgota o potencial revelador da obra. Somente uma contemplação profunda e engajada permite que o observador apreenda a essência da obra como arte, completando o ciclo criativo.

A arte, sendo essencialmente poética, envolve um processo de “poetar”, que consiste em dizer o essencial e em iluminar a verdade, e essa função poética só se cumpre inteiramente quando há uma participação ativa e reflexiva do contemplador. A obra de arte não existe isolada, mas sempre em relação ao olhar humano, que, através de sua capacidade de interpretação, consegue extrair dela significados que não estão acessíveis por meio de outros tipos de interação com o mundo.

Outro ponto crucial nesse debate é a distinção entre arte e artesanato. O artesanato é um ato de produção, onde o objeto criado mantém ainda a sua função utilitária, enquanto a obra de arte transcende o funcional. A beleza de um objeto artístico reside em seu poder de revelação e não apenas em sua forma estética. O objeto prosaico, ao ser elevado a arte, deixa de ser um utensílio comum para se tornar um meio pelo qual verdades sobre a existência humana se manifestam. Dessa forma, objetos que antes desapareceriam no uso comum, ao serem integrados em uma obra de arte, adquirem um sentido totalmente distinto, passando a carregar as marcas de sua história e os significados que o artista e o observador lhes atribuem.

Heidegger nos diz que a arte é o meio privilegiado pelo qual o ser humano, como o único ente capaz de linguagem, pode contemplar e desvendar a verdade do ser, e o modo pelo qual a verdade se mostra remete à beleza. A contemplação da obra de arte é, assim, um ato poético e completo, que se distingue da simples apreciação estética, pois exige uma abertura para o que é revelado na obra. A arte, ao iluminar a verdade, ressignifica objetos comuns, transformando-os em símbolos de algo maior, e é nesse processo de revelação que se encontra a essência do que chamamos de obra de arte. Nesse sentido, o que faz com que objetos prosaicos sejam considerados obras de arte é a capacidade da arte de abrir uma clareira onde o ser, antes velado, possa emergir, e onde a verdade, como aletheia, se desdobra, oferecendo ao contemplador uma nova compreensão do mundo e de si mesmo.