O muito paradoxal e multifacetado musico de jazz e trompetista batizado Miles Dewey Davis III, (que gostava de ser chamado apenas por Miles), teve uma carreira de quase 40 anos, na qual evoluiu constantemente seu estilo. Hoje, seu legado influencia músicos de diversos gêneros.
“Just call me Miles”
Nasceu em Alton, Illinois, em 1926, uma cidadezinha a beira do rio Mississipi, e recebeu um trompete aos 9 anos de seu tio Johnny. Teve um brilhante conselho no início do seu treinamento aos 13 anos, já com um trompete novo dado por seu pai, pelo professor de música Elwood Buchanan, na Lincoln High School.
Um conselho que o diferenciou! Ele o aconselhou a tocar sem o vibrato, uma técnica que definia o som de músicos de jazz e blues como Louis Armstrong.
O vibrato era amplamente usado por trompetistas daquela época e produzia pulsações no som, em vez de uma mudança de tom.
Apesar do nome, não é o diafragma, mas sim os músculos abdominais que o controlam, pois o diafragma não é utilizado para exalar e a maioria dos trompetistas concordava que o vibrato de diafragma não era o método preferido, pois interrompia o fluxo constante de ar.
Tocar sem vibrato resultou em um som mais suave e emocional, o que permitiu a Miles transmitir a mensagem de sua música de maneira mais direta.
Durante a década de 1950, Miles formou pequenos grupos com lendas do jazz como Julian Cannonball Adderley e Bill Evans.
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, com os jazzistas competindo com o rock que catalisava milhares de jovens, Miles experimentou o jazz fusion, mistura com o rock, adicionando instrumentos eletrônicos ao seu repertório de jazz clássico.
Miles costumava estar cercado por outros grandes nomes da música, o que influenciaria ainda mais seu som e sua carreira.
Ele foi homenageado com o Lifetime Achievement Award da Grammy Organization em 1990, e dez de seus álbuns foram introduzidos no Grammy Hall of Fame (incluindo Bitches Brew , Birth of the Cool e Kind of Blue).
Seus álbuns considerados mais importantes são:
Round About Midnight (1957): Primeiro álbum de Davis com a Columbia Records - lançado depois que ele assinou um contrato de longo prazo com a gravadora - e seu primeiro trabalho com o saxofonista John Coltrane e o baixista Paul Chambers.
Birth of the Cool (1957): As canções deste disco mostram técnicas de música clássica como a polifonia - duas melodias individuais tocadas juntas em harmonia - que definiram e ajudaram a desenvolver o gênero cool jazz.
Miles Ahead (1957): Davis toca “flugelhorn” (instrumento de sopre da família dos Trompetes) em algumas faixas, o que combina música clássica e estilos de jazz. Cada faixa do álbum flui para a próxima, formando uma suíte (um conjunto ordenado de composições musicais).
Milestones (1958): John Coltrane participa desse album, que é considerado um dos pilares da história do jazz, pois introduziu grande parte do mundo ao jazz modal - que simplificou a estrutura harmônica e permitiu que os improvisadores explorassem diferentes estruturas e ritmos relaxados em seus solos.
Porgy and Bess (1959): Esse álbum foi uma colaboração entre Davis e o músico Gil Evans, que arranjaram o álbum juntos. Ali contém várias faixas da ópera Porgy and Bess de George Gershwin de 1935.
Kind of Blue (1959): gravado numa igreja, apresenta uma coleção de gravações que são consideradas exemplos definidores do jazz moderno. Influenciou o gênero clássico, rock e jazz, e ficou em 12º lugar na lista dos 500 "Melhores Álbuns de Todos os Tempos" da revista Rolling Stone.
Sketches of Spain (1960): Este álbum levou o jazz orquestral a uma nova direção, foi elogiado por seu lirismo e graça e rendeu a Miles o prêmio Grammy de 1961 de Melhor Composição de Jazz.
Nefertiti (1967): Último álbum acústico de Miles antes de seu período eletrônico. As composições foram escritas principalmente pelos seus discípulos, o tecladista Herbie Hancock e o saxofonista Wayne Shorter.
In a Silent Way (1969): Gravado em uma única sessão e marcando sua incursão nos sons eletrônicos, que foi inovador no movimento jazz-fusion.
Bitches Brew (1970): Esse álbum catapultou a popularidade do jazz fusion e é notável por seu uso de sons eletrônicos, o que aumentou sua influência nos músicos de jazz-rock e funk.
Cool Jazz
Em 1944 Miles tinha 18 anos e seu talento já havia sido confirmado há muito tempo. Na plateia de um show da big band de Billy Eckstine em St. Louis, o jovem Miles é convidado em cima da hora para se juntar ao grupo para substituir seu trompetista enfermo.
Seduzido pela energia e criatividade do conjunto e em particular por Dizzy Gillespie e Charlie Parker, Miles decide instalar-se em Nova Iorque, onde tudo acontecia. É em Manhattan que Miles receberá não uma, mas duas formações musicais distintas, mas cada uma essencial na construção da sua identidade musical.
Recebido na Juilliard School of Music, Miles beneficia de uma formação musical rigorosa, enraizada na história da música clássica ocidental. Mas o espírito conservador e às vezes racista do estabelecimento leva Miles a se desenvolver em outro lugar.
Assim, de dia Miles frequenta uma das escolas de música mais prestigiadas do mundo, mas à noite ele percorre as ruas de Nova York em busca de um homem: Charlie Parker.
Assim, depois de apenas três semestres se desliga da Juilliard para trabalhar em tempo integral como músico freelancer. Nessa época colaborou com outros músicos de jazz como o baixista Charles Mingus, Charlie Parker, o pianista Thelonious Monk, Bud Powell e Dizzy Gillespie. Estes todos do bebop, uma linguagem altamente complexa.
Exposto diariamente aos experimentos desses grandes intérpretes, Miles logo encontrou sua própria voz e dominou os códigos do jazz moderno. Mas enquanto ele afirmava que poderia "aprender mais em uma noite no Minton's do que em dois anos de estudo na Juilliard", ele também admitiria mais tarde que os conhecimentos teóricos e clássicos que lá recebeu foram decisivos em sua compreensão da música e da composição.
Gradualmente desencantado com o rigor formal do bebop e o frenesi musical de Gillespie e Charlie Parker the “Bird”, Miles decidiu recorrer a uma música mais calma, lírica e quente: o Cool Jazz. Na verdade, Miles tornou-se o epítome do Cool, o músico-personagem que melhor utilizou o charme e sofisticação do jazz moderno, tanto pela sua personalidade como pela sua música. O nascimento deu-se em 1957 com o lançamento, de nome sugestivo, do álbum Birth of the Cool.
O nascimento do cool jazz marca também o nascimento de uma contra-revolução e um momento decisivo na história do jazz com a chegada de um novo modelo musical, fonte de inspiração para toda uma geração de músicos do outro lado da América, na costa oeste americana.
Em 1948, criou com o arranjador e pianista Gil Evans um grupo com o qual explorou um novo estilo de jazz, lírico e indiferente, notadamente influenciado pelo impressionismo clássico europeu, com novas texturas e um lirismo instrumental colaborativo ao invés de uma competição frenética entre solistas e idéias.
Enquanto Paris era invadida nos anos 1950 pelo jazz e pelos novos sons americanos, o jovem diretor francês Louis Malle finalizava seu primeiro longa-metragem “Ascensor para o Cadafalso” em 1957, sem trilha sonora. Contudo conheceu Miles, que estava de passagem pela França para uma série de concertos, e pediu-lhe que assinasse a música para seu filme. Miles concordou e rapidamente começou a compor vários padrões e acordes.
Gravada em uma única noite, a música é um trabalho livremente improvisado em torno de curtas cenas do filme, projetadas na frente dos músicos.
Esse filme lança a tendência do jazz no cinema. Muitos diretores convocam os maiores nomes do gênero, como Gerry Mulligan, Art Farmer, Art Blakey e seus Jazz Messengers, e mesmo Duke Ellington (considerado por muitos como autor da sinfonia americana).
Ao convidar a música de Miles para o seu filme, Louis Malle desencadeia uma reaproximação duradoura entre o mundo do jazz e o do cinema.
É impossível falar de Miles sem mencionar um dos grandes, senão o maior, álbum de jazz da história: Kind of Blue gravado em apenas nove horas em 2 de março e 22 de abril de 1959, num estúdio de gravação dentro de uma igreja Ortodoxa armênia. Era uma câmara de eco com reverberação de 3 segundos dada a altura de teto de 30 metros.
Nessa gravação participam vários músicos, entre eles o pianista Bill Evans, um jovem pianista branco formado no conservatório, considerado então o oposto de Miles. Mas dizem que os opostos se atraem, e a música de Miles e Bill Evans é prova disso. Ambos eram mestres do minimalismo, falando tanto com tão pouco, manipulando seus respectivos instrumentos para aprimorar seu estilo distinto.
Nesse disco as progressões de acordes servem para "guiar" o instrumentista, tornando a música um tanto previsível, entretanto os experimentos modais de Miles abriram o jazz para um mundo diverso. A fragilidade com que trabalhava a surdina de seu trompete igualava-se à delicada facilidade de Evans com o pedal “suave” do piano.
Curiosidades
Numa entrevista concedida em junho de 1959 ao jornal francês "Le Monde" Miles disse que ficava muito doente após cada turnê. “Tenho calafrios, uma mancha no pulmão, duas hérnias por causa de esforço físico, um nervo comprimido nas costas. A minha mão formiga quando eu fumo. Tenho muitos problemas, inclusive diabetes e pés inchados.” Tais problemas físicos tinham origem nas drogas por ele consumidas fartamente, assim como por vários jazzistas da época.
Ao mesmo tempo, Miles dizia que a música e o palco sempre lhe proporcionavam bem-estar. “Se eu pudesse estar no palco durante todo o ano, eu não pararia de tocar. No palco, eu sinto o ar entrar nos meus pulmões”, firmou. Nessa mesma entrevista, o músico revelou que pretendia encerrar a carreira em 92.
Miles exibiu-se no Brasil em 1974 e em 1986, no Free Jazz Festival. Uma terceira apresentação, agendada para 1988 no 4° Free Jazz, foi cancelada devido a uma pneumonia.
Ele era um músico exigente, tanto no estúdio quanto no palco e se recusava a apertar a mão de qualquer pessoa antes de um show, por medo de que o óleo de outra mão mudasse a sensação de suas próprias mãos.
Usava sapatos de um tamanho menor no palco com os cadarços o mais apertados possível. E ele se privava antes de subir no palco de toda comida e de toda atividade sexual. Será que essa fome, esse desconforto e essa “insatisfação” explicariam em parte a presença cênica de Miles, muitas vezes considerado antipático, até rude? Certamente não.
Miles nunca pedia para que a plateia ficasse quieta. Não falava com a plateia, nunca lhe dirigia uma palavra. Quando perguntado por Max Gordon, proprietário do Vanguard, “por que não se curvar ao final de um número? Por que não anunciar os músicos da sua banda, para que saibam que você é Miles Davis? Vários nunca o viram antes”.
Respondia “eu sou músico, não sou comediante. Não vou falar feito uma matraca como Rahsaan. Não me entenda mal. Eu gosto dele. Se quiser um falastrão para matraquear no Vanguard não me contrate. Eu não sorrio, não me curvo agradecendo. Eu dou as costas. Por que você escuta as pessoas, Maaax? O branco sempre quer que você sorria, sempre quer que o negro se curve. Eu não sorrio e não me curvo. Está bem? Estou aqui no Vanguard para tocar música. Eu sou músico.” Max Gordon aprendeu o quão não é fácil lidar com egos de gênios. Mas Miles era dinheiro em caixa, muito dinheiro.
Ele também tapava os ouvidos quando um de seus colegas iniciava um solo. Voltado para seus músicos, ele podia ouvir a música como um maestro de orquestra. Ele fechava os ouvidos não para não ouvir os solos, mas, ao contrário, para ouvi-los melhor (bloqueando os outros sons que interferiam em sua audição). Às vezes saía do palco para não chamar a atenção do público durante os solos dos colegas. Seja qual for o motivo, a presença de palco de Miles fará parte do mito do artista.
Miles fica na moda
Durante a década de 1960, o jazz parecia pegar um resfriado na sombra do rock. Mas ao invés de se curvar ao sucesso desse novo gênero, Miles Davis vê no rock um novo território que está pronto para explorar com seu trompete. Em 1969, o álbum “In a Silent Way” anuncia não só a evolução de Miles Davis para uma fusão musical entre o jazz e o rock como também uma “eletrificação” do jazz com a utilização do teclado e da guitarra elétrica.
Em 1970 Miles atingiu o ponto sem volta em sua evolução com o álbum Bitches Brew, elétrico em todos os sentidos da palavra. Com sua ferocidade e poder hipnótico enraizado no rock e na música africana, o álbum carrega consigo um impulso que o projeta no futuro do jazz, anunciando um novo mundo sonoro, e também um novo Miles.
Um toque de clássico
Miles não se contentou com sua revolução elétrica de 70. Desejando fundir sua música com a essência do “Black Power” então em plena floração, ele produziu “On the Corner” em 1972 e por trás dele esconde-se outra influência inesperada, o compositor alemão Karlheinz Stockhausen.
Em maio de 1972 e a conselho do violoncelista Paul Buckmaster, Miles descobriu a música do compositor vanguardista: chegou a guardar uma fita cassete do “Hymnen” de Stockhausen em seu Lamborghini Miura para ouvir a obra na estrada!
Rapidamente surgiu aos dois artistas a idéia de misturar os ritmos do funk com as idéias formais e abstratas da música contemporânea, e em particular a repetição e o "looping" de sons. Apesar da audácia musical e criativa de Miles, o álbum será um fracasso, rejeitado tanto pela imprensa quanto pelos puristas do jazz e fãs de Miles Davis. Quase 50 anos depois, Miles Davis riu por último.
A voz única de Miles
A voz masculina é única e distinta e o timbre áspero de Miles certamente contribuiu para o ar "cool" do artista. Ela não era (apenas) resultado do abuso de álcool e substâncias, mas, sobretudo de uma operação em 1957 para remover um nódulo vocal. Após a operação, seu médico aconselha fortemente a não falar alto. Mas quando uma negociação de contrato dá errada, Miles perde a paciência e levanta a voz, danificando permanentemente suas cordas vocais.
A tendência Miles Davis
Ninguém pode negar que Miles dominava as modas da música, mas ele também parece ter dominado a moda. Eleito o músico "mais estiloso" pela revista GQ e um dos 75 homens mais bem vestidos de todos os tempos pela revista Esquire, Miles se destacou tanto por sua música quanto por sua aparência.
Mas este parece evoluir no mesmo ritmo que sua música. Conhecemos o jovem Miles em seus trajes sóbrios, limpos e bem cortados, como o jazz de sua época. Com a chegada do jazz “cool” chegam as roupas em tons pastéis, quentes e suaves. Mas Miles parece ter arrumado seu camarim depois de 1968! Muito parecido com a música selvagem e furiosa que se segue, fundida com inúmeras influências distintas, seu estilo de vestir acolhe todas as cores e texturas imagináveis de todo o mundo, com tecidos e padrões vindos da África, Ásia e América do Sul.
Pode-se admirar o trabalho tanto pelos seus vários discos famosos que marcaram para sempre a história do jazz quanto pelos artistas convidados para participar das suas gravações. A longa carreira de Miles é terreno fértil no qual inúmeras lendas do jazz floresceram, incluindo Keith Jarrett, Herbie Hancock, Chick Corea, Red Garland, Bill Evans, John Mclaughlin, Marcus Miller, John Coltrane, Wayne Shorter e Jack Dejohnette, Carlos Santana, para citar muito poucos.
Miles foi oficialmente casado com três mulheres que se tornaram grandes celebridades em seu tempo. São elas: Frances Taylor Davis (1959-1968), Betty Davis (1968-1969) e Cicely Tyson (1981-1989).
O músico sempre teve muitos problemas de saúde ligados ao consumo de drogas. Em entrevistas Miles chegou a admitir que parte desses problemas tinha origem no vício da heroína.
Miles Davis morreu no dia 28 de setembro de 1991, aos 65 anos, de pneumonia, problemas respiratórios e infarto, no St. John's Hospital, perto de Santa Mônica, na Califórnia e seu legado continua a inspirar as novas gerações de músicos em todo o planeta.
Quinze anos após sua morte, ele foi introduzido postumamente no Rock & Roll of Fame em 2006.
Um agradecimento especial do Tíndaro ao Ricardo Miguel de Souza.
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