Quando vemos esculturas brancas esculpidas em mármore, como o Davi, de Michelangelo, temos presente a concepção de que se trata de uma obra de arte bela. Contudo, no período grego/romano antigo, as estátuas em mármore eram coloridas, esse era o padrão clássico. Sabemos disso pela análise de resíduos de pigmentos encontrados em esculturas antigas. As estátuas de mármore que sobreviveram até os nossos dias perderam suas cores com o tempo.
Quando os renascentistas foram buscar inspiração para as suas obras, já não havia cor nos exemplares da época clássica mencionada e, desse modo, trabalharam com o que tinham como modelo, em um mal-entendido histórico da arte. Hoje, apesar de sabermos que na época de ouro da arte antiga o que se valorizava era outro padrão, não é fácil para nós olharmos uma escultura colorida e termos a mesma fruição estética do que diante de uma escultura branca. Cultura. Construção social nos moldando até no que sentir e diante do que sentir.
Outro exemplo de construção cultural de nossas noções de beleza é o chamado pé de lótus, uma prática chinesa de modificação corporal que consistia em enfaixar os pés das meninas desde muito jovens para limitar o crescimento natural dos pés, com o objetivo de alcançar um formato considerado belo. Essa prática se tornou um símbolo de status e beleza particularmente entre as classes altas, mesmo à custa da saúde e do bem-estar físico.
Pés pequenos eram vistos como um sinal de feminilidade, delicadeza e erotismo. As mulheres que possuíam pés pequenos eram consideradas mais atraentes e desejáveis para o casamento. A prática do enfaixamento dos pés causava dor extrema, deformações permanentes, e sérias limitações à mobilidade das mulheres e, mesmo assim, remetia ao belo.
Em desenhos animados mais antigos e até pouco tempo, era notório também padrões estéticos para os vilões e para os heróis. Mesmo sem saber a história, vendo os dois personagens já se poderia acertar qual papel cada um deles desempenharia na trama. Isso pode ser remetido a uma tese antiga que pode ser lida em Platão, da beleza como um símbolo do bem. Nesse sentido, nos desenhos mencionados, se reforçava que o belo seria o herói e o feio seria o vilão.
Além disso, a própria noção de beleza utilizada nesse contexto também era uma decisão cultural, limitada. Seguindo princípios como o dos estudos de Vitrúvio, um arquiteto que viveu no século I a.C, se estudou por longo tempo a relação da beleza com a proporção e a simetria. Foi o trabalho de Vitrúvio que inspirou a conhecida obra O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci.
Conjugando a abordagem de Vitrúvio com a consideração de influência platônica, o que temos são obras como Cristo Carregando a Cruz, de Bosch, no início do século XVI, na qual apenas estão proporcionais e simétricos os rostos de Jesus e de Verônica, a mulher que teria enxugado o rosto de Jesus. Todos os demais personagens do quadro estão pintados sem o mesmo rigor com relação a proporcionalidade e a simetria.
Até mesmo a Torre Eiffel, um dos monumentos mais reconhecidos e visitados do mundo, símbolo de beleza, foi considerada feia e chamada de “chaminé gigante”, uma afronta ao bom gosto e à elegância arquitetônica de Paris por importantes intelectuais e artistas franceses na época de sua construção, que chegaram a publicar uma carta aberta chamada Protesto dos artistas contra a torre do Sr. Eiffel. Não precisou de muito tempo para que as pessoas olhassem para a mesma “chaminé gigante” como um marco de beleza arquitetônica e cultural.
Note-se, que não se trata somente de uma cultura bem distinta para que se tenha noções diferentes de beleza. Uma mesma comunidade, em pouco tempo, pode ter suas noções de beleza e feiura reviradas ao avesso. Ou, ainda, se tem em uma mesma comunidade ao mesmo tempo, várias noções distintas de beleza, em grupos que convivem harmonicamente em uma mesma localidade.
A questão que se quer salientar nessa breve reflexão é a de que corremos o risco constante do etnocentrismo, de julgarmos os outros a partir de nossa própria cultura, como se a nossa cultura fosse a correta, a justa, a bela, e todas as demais estivessem erradas. Ou, ainda, a de nos submetermos de bom grado a procedimentos invasivos, dolorosos, irreversíveis de modificação constante de nossa biologicidade apenas para nos adequarmos a uma concepção de beleza que vale hoje, fruto de uma construção cultural, e que talvez não valha mais amanhã, ou, ainda, não valha do outro lado do rio.
O que se costuma ver propagada é a constante valorização do corpo ideal (ideal, não o real, não o possível), a saúde ideal, a vida ideal, o trabalho ideal, e nessa busca constante pelo ideal deixamos de valorizarmos o real, o possível, deixamos de tirar fotos sem os filtros do aplicativo e, depois, não nos reconhecemos no espelho, sem os mesmos filtros. Além disso, por fim, fica a dúvida, sobre o quanto de nossa noção de beleza realmente é genuína e o quanto dela é refém de nossa cultura (da qual, aliás, não nos é possível desviar). O que fazer diante disso?
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