Imagine a cena: diante da gravata azul-claro pintada por Picasso, alguém comenta que até uma criança poderia fazer algo semelhante. Esse comentário incita uma reflexão profunda sobre o que realmente diferencia a obra de um gênio artístico de uma mera imitação. Para testar a hipótese, uma criança pinta uma gravata idêntica, replicando as mesmas cores e padrões. Ainda assim, essa nova gravata não adquire o mesmo status, pois lhe falta a conexão com o contexto criativo e histórico que rodeia a fictícia obra original de Picasso. A ideia de que a habilidade ou o resultado visual seriam suficientes para definir a arte se dissolve diante da importância do "mundo da arte" e da narrativa associada ao criador.
A história se torna ainda mais intrigante quando entra em cena um falsificador. Com habilidade técnica impecável, ele produz uma cópia perfeita da gravata de Picasso. O que a difere da original, então? Esse cenário confere à gravata um status que vai além de sua aparência material: ela se torna um veículo para a expressão de ideias e intenções artísticas.
A gravata pintada por uma criança, ainda que idêntica na forma e na cor, não é considerada uma obra de arte porque lhe falta a intencionalidade artística e o reconhecimento institucional. Já a falsificação não é considerada uma obra de arte por surgir como um ato de reprodução, destinado a enganar, enquanto a obra de Picasso carrega a marca de uma visão artística única. Essa diferença essencial ilustra como a arte transcende a matéria e se conecta ao significado atribuído pelo contexto e pela história.
Contudo, Danto complica ainda mais o exemplo quando sugere que o próprio Picasso possa ter confundido a obra dele com a do falsificador e assinado a falsificação, tendo sido a obra original apreendida e esquecida em um depósito das autoridades. Agora a falsificação se tornou arte?
Danto utiliza esse exemplo para ilustrar como a arte transcende os aspectos perceptuais e envolve elementos contextuais e históricos. Ele argumenta que o que diferencia uma obra de arte de um objeto comum não é sua aparência física, mas o "mundo da arte" em que está inserida. Esse mundo inclui não apenas museus e galerias, mas também teorias e narrativas que conferem significado às obras.
Embora seja indistinguível das outras duas, o status da falsificação, ainda que assinada, é marcado pela intenção de enganar. Danto sugere que essa intenção afeta a forma como percebemos o objeto, destacando a importância da autenticidade e da relação causal entre a obra e seu criador. Esses exemplos desafiam a ideia de que a arte pode ser definida apenas por suas qualidades estéticas ou materiais. Para Danto, a arte é "corporificação de significado", uma combinação de forma e conteúdo que reflete não apenas o objeto em si, mas também o contexto em que foi criado e apresentado. Nessa perspectiva, a arte, para o filósofo, estaria relacionada ao sistema de valores e significados que envolve o objeto.
A reflexão sobre as três gravatas também levanta questões sobre a natureza da falsificação e o papel da história na apreciação da arte. Enquanto alguns podem argumentar que uma cópia perfeita pode substituir o original, Danto aponta que a história de uma obra é inseparável de seu valor artístico. No caso da gravata de Picasso, seu status como obra de arte está ligado não apenas à sua aparência, mas também à narrativa de seu criador e ao reconhecimento de sua contribuição para a história da arte.
Danto amplia essa análise ao destacar que o "mundo da arte" é uma construção social que determina o que é reconhecido como arte em um dado momento. Esse mundo, composto por críticos, curadores, artistas, professores e instituições, funciona como um filtro que separa as obras de arte dos objetos comuns. Assim, o valor de uma obra não está apenas em suas características visuais, mas também no discurso que a cerca e no contexto em que é inserida.
Diante disso, o argumento sugere que a arte não pode ser reduzida a uma definição universal e imutável. Em vez disso, ela é um fenômeno dinâmico, moldado por mudanças culturais, históricas e filosóficas. O que hoje é considerado arte pode não ter sido reconhecido como tal no passado, e o que não é arte hoje pode vir a sê-lo no futuro.
Essa perspectiva transforma a maneira como entendemos a criação e a apreciação artística, sugerindo ir além da superfície e a considerar as camadas de significado que envolvem uma obra. A gravata pintada por Picasso, a cópia de um falsificador e a cópia de uma criança não são apenas pedaços de tecido, elas são pontos de partida para um diálogo sobre autenticidade, intenção e o papel da arte em nossas vidas.
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