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Entre a sabedoria antiga e a estética medieval

Quando ouvimos uma melodia que nos toca profundamente ou contemplamos uma obra de arte cuja simetria nos parece irresistível, estamos apenas manifestando um gosto pessoal, condicionado pela cultura, ou reconhecendo um princípio mais universal, uma ordem subjacente que transcende tempos e lugares?

boécio

8 minutos

Boécio (477-524 d.C.), situado na transição entre a antiguidade clássica e o período medieval, foi um filósofo romano com profundo conhecimento clássico, escrevendo em uma época em que as instituições antigas estavam em declínio, mas antes que os quadros intelectuais medievais estivessem plenamente desenvolvidos.

Para Boécio, a música não se reduz a uma expressão artística no sentido contemporâneo. Para o filósofo, em sua visão influenciada por Pitágoras, a música seria uma das manifestações mais claras dos princípios matemáticos que governavam todo o cosmos. Boécio distinguiu três tipos fundamentais de música: a mundana, a humana e a instrumentalis.

Harmonia Macrocosmica (1660), de Andreas Cellarius

A música mundana, entendida como a música cósmica, a música dos mundos, referia-se à harmonia (inaudível) produzida pelo movimento dos corpos celestes e pelas relações matemáticas que regiam esse movimento dos astros. Para Boécio longe de ser uma metáfora, as proporções entre os planetas e as estrelas criavam uma forma de harmonia que exemplificava a ordem divina. Aqui, vemos Boécio preservando a tradição pitagórica, que via as relações matemáticas como a realidade fundamental por trás dos fenômenos aparentes.

Já a chamada música humana dizia respeito à harmonia interna do ser humano (entre corpo e alma, e entre as partes da alma) como um reflexo da harmonia musical, o que aproximava a estética da ética ao associar equilíbrio moral a proporção e ordem.

Por fim, a música instrumentalis referia-se à música audível, produzida por instrumentos ou vozes. Notavelmente, Boécio a considerava a forma menos importante de música, valorizando-a principalmente por refletir ou se aproximar das harmonias superiores, inaudíveis, da música cósmica e humana.

Essa hierarquia sugere um aspecto fundamental da teoria estética de Boécio: o valor da arte não reside na expressão emocional ou na apreciação subjetiva, mas em sua capacidade de incorporar e representar relações matemáticas objetivas que refletem a ordem divina, ou, ainda, a ordem que já está no todo do mundo. A beleza, nessa concepção, assim como para os pitagóricos, não está “nos olhos de quem a vê”, mas nas proporções matemáticas que expressam a harmonia cósmica.

O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci

Assim como os princípios vitruvianos de proporção influenciaram a arte renascentista séculos depois, Boécio compreendia a beleza como fundamentalmente matemática. Nas suas obras matemáticas, Boécio preservou e transmitiu concepções pitagóricas e neoplatônicas que entendiam os números como fundamento da realidade, e esses escritos tornaram-se essenciais no ensino medieval do quadrivium, os “quatro caminhos” ou, ainda, as quatro disciplinas nas artes dos números a serem ensinadas nas escolas da época: aritmética, geometria, astronomia e música.

A relação entre os números se apresentava como um sintoma de algo essencial sobre a própria realidade. A beleza surgia quando as criações artísticas, sejam composições musicais, estruturas arquitetônicas ou representações visuais, incorporavam essas proporções ideais que já estavam na base da realidade.

A abordagem de Boécio ilustra as peculiares sensibilidades estéticas do final da Antiguidade e do início do período medieval. Ao observarmos os mosaicos de Ravena, por exemplo, criados durante a vida de Boécio, ou ouvirmos o desenvolvimento do cantochão, encontramos formas artísticas que priorizam a representação simbólica e a harmonia proporcional em vez da representação naturalista ou da expressão emocional. Essas não eram limitações estéticas, mas escolhas deliberadas que refletiam uma compreensão filosófica da relação entre beleza e ordem cósmica.

Mosaico de Ravena, Itália

Nossas concepções contemporâneas frequentemente priorizam a originalidade, a expressão e a experiência subjetiva em detrimento da harmonia matemática ou da correspondência cósmica. No entanto, assim como nossa dificuldade em apreciar as estátuas gregas originalmente coloridas, mencionada em outro texto, essa lacuna na sensibilidade estética reflete nossas próprias limitações culturais.

Boécio pode ser entendido como uma ponte cultural. Assumiu a tarefa de preservar o conhecimento clássico para as gerações futuras, buscando garantir a continuidade da filosofia ao traduzir para o latim as obras de Platão e de Aristóteles. Tal tarefa foi interrompida, contudo, por sua execução.

Nessa posição de transição, Boécio transformou as teorias estéticas que herdou. Embora tenha se baseado fortemente em fontes pitagóricas, platônicas e neoplatônicas, ele adaptou essas tradições para responder às preocupações intelectuais e espirituais de um mundo em transformação. Sua síntese entre harmonia matemática e preocupações teológicas cristãs influenciaria pensadores medievais, de Cassiodoro a Tomás de Aquino.

As catedrais medievais construídas séculos após a morte de Boécio, com suas proporções cuidadosamente calculadas, padrões geométricos e propriedades acústicas projetadas para o canto gregoriano, trazem o selo dessa abordagem matemática da beleza. Quando arquitetos e músicos medievais criavam obras guiadas por razões numéricas que acreditavam refletir a harmonia divina, estavam operando dentro de uma tradição intelectual que Boécio ajudou a preservar e a transformar.

Harmonia Macrocosmica (1660), de Andreas Cellarius

Embora tenha mantido a hierarquia neoplatônica que privilegiava o imaterial sobre o material, sua perspectiva cristã permitiu que a beleza material servisse como um portal para a verdade divina, em vez de ser meramente uma distração dela. Essa sutil mudança abriria espaço para a rica tradição da arte religiosa medieval, que utilizava o esplendor visual para conduzir a mente à contemplação espiritual.

A integração que Boécio faz entre estética, ética e metafísica desafia nossa moderna compartimentalização desses domínios. Para ele, a questão da beleza era inseparável das questões da verdade e do bem, uma abordagem holística que vê a experiência estética como parte integrante da existência humana, em vez de isolada como um domínio independente da experiência.

Resta a pergunta: o que devemos fazer com uma teoria estética que parece, como nossos exemplos iniciais, limitada por sua posição cultural e histórica? Em vez de simplesmente descartar a abordagem matemática de Boécio à beleza como ultrapassada, podemos usá-la para refletir sobre nossas próprias suposições estéticas. Quanto do que consideramos belo é moldado pelo nosso momento cultural? Quais aspectos da beleza podem transcender fronteiras culturais? E como nossas teorias da arte podem se conectar a questões mais amplas sobre realidade, verdade e realização humana?

Boethius initial consolation philosophy

Em Boécio, um filósofo romano escrevendo em latim enquanto servia a um rei germânico, baseando-se em fontes gregas enquanto praticava a fé cristã, encontramos um pensador que reconhecia, ele próprio, a complexidade da transmissão e transformação cultural. Sua obra é, ao mesmo tempo, uma preservação da sabedoria antiga e uma adaptação que moldaria o pensamento medieval. Em nossa própria época de rápidas mudanças culturais e interconectadas, na qual se valoriza a última novidade on-line, o pensamento de Boécio se projeta no sentido de nos lembrar da importância de abordar tanto as teorias estéticas do passado quanto as do presente, reconhecendo que nossas noções de beleza, assim como as que nos precederam, estão simultaneamente enraizadas em princípios duradouros e moldadas por momentos culturais passageiros.